Os “Alimentos
Alcalinos”, o Sangue e a Covid-19
(Texto publicado no Jornal Folha do Sudoeste, em 27/05/21) ...
Novamente,
vejo necessário voltarmos a falar da Pandemia. Infelizmente, a
maciça veiculação de desinformações e mentiras coloca a saúde
humana – e também dos animais – em risco. Já ouvi gente
atribuindo, a essas falsas teorias, possíveis benefícios, também,
aos nossos animais de companhia. Tudo falso, ilusório e carente de
um mínimo de lógica e bom senso.
Há
muito, circulam nas redes sociais, publicações equivocadas,
enganosas e até – muitas vezes – criminosas (pois coloca a saúde
de muitos em risco), envolvendo curas milagrosas ou prevenções
infalíveis para a Covid-19.
Desta
vez, as postagens apontando determinados alimentos e suas influências
no pH sanguíneo e no combate a algumas doenças, em especial
Covid-19, ganharam destaque.
São
mensagens absurdas, com erros grosseiros do ponto de vista básico de
química, biologia... enfim, de conhecimento tão básico que sequer
compreendo como muitos possam ter acreditado. Por exemplo, alegar que
limão é alcalino. Alcalino? Sério? Limão é uma fruta cítrica,
tão ácido – e todos sabem – que chega a retrair a gengiva.
Recebi
postagens, deste tipo, de amigos formados em diversas áreas, até
médicos e veterinários. E o pior, alguns fazem parte das pessoas
que tentam, a todo custo, desmoralizar o sistema de ensino atual.
Mas, lamentavelmente, estas pessoas estudaram nos anos 70 e 80, em
pleno Regime Militar, onde, segundo os mesmos, o ensino era muito
superior em qualidade. Só questiono uma coisa: “era tão superior,
tão bom, e me passam uma dessas? Isso é o básico! Coisa do ensino
médio! É lamentável... uma vergonha!”. Tivemos, sim, excelentes
professores... assim como, hoje, também os temos. E isso deixa claro
que o problema nunca fora o sistema de ensino, o problema reside, em
parte, no aluno.
Em
uma destas postagens absurdas, lia-se uma relação de alimentos que
seriam capazes de “alcalinizar o sangue e matar o vírus da
Covid-19”, inclusive sob alegação de que este – o vírus! –
seria de pH ácido. Isso, obviamente, chega a ser ridículo, tamanha
a carga de mentiras em uma única postagem que, logo de início,
vinha com o título: “Conselhos dos hospitais para isolamento”, e
seguia com diversas informações imprecisas, típico das “fake
news”, até chegar ao ápice de conferir ao vírus um pH (alegado
ser ácido) que variaria de 5,5 a 8,5 (pH 8,5 é ácido?); difícil
imaginar como seria isto.
A
sandice continua em uma total confusão e distorção em relação
aos parâmetros de pH.
Certo,
tudo bem... entender, realmente, o que seja pH, não é assim tão
fácil... tem toda aquela história de hidrônio e hidroxila,
dissociação iônica, ânions e cátions... é difícil! Mas quem
passou pelo ensino médio tem a obrigação de saber... ao menos, ter
uma noção do que é acido ou o que possa ser básico (alcalino).
Mas... não é o que parece.
A
referida postagem alega, baseado nessa falsa relação de pH do
vírus, que deveríamos ingerir alimentos “alcalinos” a fim de
alterar o pH corpóreo ou sanguíneo e, desta forma, impedir a
replicação viral.
Eu
juro... nem sei por onde começar, tamanho disparate.
Só
a fim de esclarecimento, trataremos aqui, as substâncias de pH acima
de 7,0 como “básicas”, que é o termo, tecnicamente, correto. O
termo “alcalino”, apesar de aceito, tem gerado confusões
perigosas, já que confunde o entendimento entre pH, Alcalinidade e Dureza
Carbonatada (KH), que, inclusive, tem levado muitos a tomarem água
com pH acima de 8,0... uma bobagem; mas já é outra história...
Bom...
o texto – da referida postagem – começa citando alguns alimentos
que – segundo sua ciência, possivelmente de outro planeta, tamanha
a discrepância – teriam o pH “alcalino” (básico). Cita o
limão, como se tivesse pH de 8,2 a 9,9; o abacate, com seus absurdos
15,6; o alho, com 13,2; a manga , 8,7; o abacaxi, como tendo pH de
12,7; a laranja, com 9,2; e o agrião, com seu, paradoxalmente,
impossível pH de 22,7.
Pois
bem... quem passou pelo ensino médio ou por uma faculdade (o que é
mais absurdo), tem a obrigação de perceber que estas informações
são grosseiramente mentirosas.
E
o absurdo é tanto que basta sabermos que o Hidróxido de Sódio, que
conhecemos como Soda Cáustica, tem pH de 13,5.
O
pH – Potencial Hidrogeniônico – indica a acidez, neutralidade ou
basicidade de um meio. Segue uma escala que varia de 0 a 14, sendo 7
a representação de uma solução neutra; abaixo deste, indica uma
solução ácida e os valores acima, uma solução básica.
O
limão, ao contrário do que diz a referida postagem, é de pH muito
ácido (2,0 a 2,8), como também é ácido o abacate (6,2 a 6,5), o
alho (5,8), a manga (3,4 a 4,8), o abacaxi (3,2 a 4,0), a laranja
(3,7 a 4,4) e, também, o agrião. Outro detalhe importante, e que
poucos perceberam nesta postagem mentirosa, é o fato de que a faixa
de pH vai de 0 a 14. O pH pode até fugir dessa escala e passar –
em situações muito específicas – o valor de 14, mas atingir um
valor de 22,7 (que foi o pH atribuído ao agrião) é algo,
quimicamente, impossível.
Alegar
que a ingestão de determinados alimentos possa, indubitavelmente,
interferir no pH sanguíneo ou corpóreo é de uma total falta de
conhecimento básico da fisiologia ou da bioquímica e metabolismo
orgânico.
Ao
ingerir um determinado alimento, este começa, ainda na boca, com o
processo de mastigação, salivação e deglutição, a sofrer
transformações para que, no processo digestivo, possamos assimilar
e aproveitar a maior parte de seus nutrientes. Sendo assim, ao passar
pelo sistema digestório, os alimentos são metabolizados e passam
por diversas transformações até seus nutrientes serem destinados a
locais específicos. Não há um alimento que passe por este
processo, inalterado, de forma a causar qualquer alteração a nível
sanguíneo.
Nosso
sangue tem um pH de 7,34 a 7,44 e sua manutenção é garantida por
diversos mecanismos fisiológicos. Se fosse possível, podemos dizer
que, alterar o pH sanguíneo, causaria um verdadeiro desastre
metabólico com sérios prejuízos à saúde e à vida.
Existe,
dentro do processo digestivo, a formação residual chamada de
“cinzas”, do qual podem resultar frações denominadas
alcalinógenas ou acidógenas, no entanto, mesmo em se tratando de
resultantes básicos ou ácidos, por si só, não interferem
diretamente no pH sanguíneo ou corpóreo.
Outra
informação mentirosa, que vem surgindo de tempo em tempo, diz
respeito a intolerância do Sars-CoV-2 a altas temperaturas. Algumas
postagens – inclusive veiculadas por médicos – sugerem que o
vírus morreria em temperaturas superiores a 26 ºC. É algo tão
absurdamente tolo que bastaria perceber que a temperatura normal de
nosso corpo é de 36,6 a 37,0 ºC, ou seja, dentro desta teoria
absurda, jamais seríamos infectados. Enfim, estudos comprovam que o
vírus Sars-CoV-2 (Covid-19) pode suportar temperatura de 50 a 60 °C.
Sei
que é difícil saber em quem acreditar quando vemos médicos e
outros profissionais de saúde compartilhando e disseminando
mentiras, mas é fácil identificar mentiras, quando sabemos o
básico. Obviamente, ninguém é obrigado a saber tudo, mas a um
médico, a um veterinário ou a um biólogo ou outro profissional de
saúde, faz-se necessário entender o mínimo sobre pH e é
inadmissível que digam bobagens absurdas acerca da fisiologia humana
ou de uma doença viral.
Ah...
mas podem comer, normalmente, as frutas, verduras e demais alimentos
citados... pelo menos, isso é realmente bom, só não vai alterar o
pH de sangue e muito menos “matar” o vírus.
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