sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Asperger

 Asperger


Encontrei a porta entreaberta, no dia em que ela morreu... mas ela não estava lá dentro; eu já havia cruzado com seu corpo, entre as flores do jardim.

Nem tudo que morre, sucumbe.

Havia olhado, por muito tempo, para problemas que não existiam... e – obviamente – jamais encontraria solução para eles; mas eles persistiam em minha mente. Era como um medo de cruzar sozinho uma trilha na mata, em noite de Lua cheia. E todos os dias eles me desafiavam, e me deixavam confuso.

Meus problemas quiméricos, agora, estavam lá, aprisionados na mente, esmagando a beleza de um jardim que eu nunca havia percebido. 

Tenho dificuldade de olhar em seus olhos, em admitir a beleza ou expressar sentimentos afetivos, mas já foi pior... hoje eu consigo sorrir.

Um dia eu disse que não sentia saudades, que era algo vazio para mim, e você achou que eu estava brincando...

A vida toda eu tive que mentir, fingir, fazer de conta...

Quando eu passei pela minha mente, naquele jardim, pude sentir a dificuldade em abandonar todos os devaneios... eles faziam parte de mim.

Algum artifício fora preciso para que eu ignorasse minha mente – mesmo que ela ainda se mantivesse sempiterna, trazendo consigo a angústia da "irresolubilidade" do nada – e eu resolvi ignorar a mim mesmo. Naquele momento, eu abri completamente aquela porta. E, com certeza, ela sempre esteve ali, entreaberta, mas eu sequer cheguei a perceber o próprio jardim. 

A vida toda, estive na inércia psíquica... a insensibilidade que outrora fez de mim, invisível, agora faz de mim, irresoluto. Hoje, nem sei se isso é real, mas, até então, eu entendia algo que, aos demais, era tão invisível e ininteligível quanto eu. Minha visão de mundo estava além da inocência, mas não tenho mais certeza disso...

Quando abri, de vez, aquela porta, havia um grande espaço vazio, com um zunido muito agudo, ensurdecedor... Ao lado direito, pude ver a estupidez sendo exaltada e à esquerda, a inocência sendo explorada. Abaixo, o infinito reverberava tudo aquilo que a mim não fazia sentido. A impiedade tentava me esmagar, vindo de cima, disfarçada do mais perfeito contentamento.

Fiquei parado, na entrada, por um longo tempo...

Eu podia esmagar minha cabeça, ou seguir em frente.

O vazio faz, do tempo, inimigo. 

Eu podia enxergar, por vezes, até com certa clareza, sete portas, cada qual com dizeres sedutores, para mim... e alguém havia escrito com faca, o nome de um demônio, em cada uma delas. E eu já havia experimentado um pouco de cada caminho a que essas portas me levariam, mas não os entendia muito bem.

Quando, enfim, transpassei completamente, a porta, atrás de mim, bateu com força... ao lado desta, outras sete portas se fizeram presente...  era como um espelho, a refletir o que se via à frente; e, como em um espelho, o inverso.

Tudo ali me incomodava muito... e eu até tentei voltar... e nesse momento percebi que a porta que se fecha, jamais poderá ser reaberta.

Lá fora, deitada entre as flores do jardim, jazia minha infância, esmagada entre os devaneios, enclausurada em minha mente. 

Senti a pressão, vinda de cima, e o vazio abaixo dos meus pés. Olhei para os lados e vi a infelicidade de ser enganado, iludido e a estupidez a sorrir, absurdamente tola.

Ziguezagueei entre as portas e pude compreendê-las... era algo entre o bem e mau, distorções exageradas dos instintos básicos, uma visão abstrata da razão humana. Coisas que me levariam da ufania à compunção, da vaidade humana ao medo extremo incutido.

Pecados e virtudes tornam complexa demais a simplicidade da vida humana.

Abri todas as portas... mas não entrei, verdadeiramente, em nenhuma delas... e vivo aqui... nesse grande espaço vazio.